Parece até um senso comum para praticantes de alguma doutrina ou sistema religioso que deve-se buscar a “evolução espiritual”. Mas o fato é que este senso comum não possui fundamentação tradicional e é mais recente do que se imagina. Este não é um fundamento doutrinário de sistemas religiosos tradicionais abraânicos, estes sistemas religiosos baseiam-se no conceito de salvação por meio da obediência à uma doutrina revelada. Consultando os textos sagrados observa-se que a Torá Judaica e a Bíblia Cristã sequer mencionam a palavra “evolução”. No Alcorão, esta palavra é utilizada relacionada à processos de maturação do mundo material, não ao desenvolvimento do espírito.
Também não é fundamento dos cultos
tradicionais africanos e nativos do Brasil, não há registro escrito sobre a
existência de uma “finalidade evolutiva” no exercício da espiritualidade. O que
se observa em registros modernos é que para os povos tradicionais brasileiros e
africanos a prática espiritual é parte da sua cultura, podendo constituir uma
maneira de interação com os antepassados e com a natureza, criação e
fortalecimentos vínculos familiares e, até mesmo, rituais de cura (OLIVEIRA,
2016).
Evoluir espiritualmente não é um objetivo, a questão para estes povos é viver
bem.
Certamente se você está lendo
este texto, possui alguma relação ou interesse em cultos afro-brasileiros, estes
que estão atravessados por elementos de religiões abraânicas e cultos
tradicionais em diferentes nuances e formas. E curiosamente, nos cultos
afro-brasileiros nota-se um carinho especial com a expressão “evolução espiritual”,
de maneira que esta seria a nossa “missão” na Terra e, de certa forma, preenche
o nosso vazio existencial causado pela pergunta: “Para que viemos a este
mundo?”. Mas por que os antigos não observaram essa questão? E quem trouxe este
conceito para os nossos cultos? Existem
algumas possíveis respostas para estas perguntas.
Uma é a hipótese de que este conceito é
inspirado na ideia de progresso espiritual através das reencarnações, própria
dos povos asiáticos, assimilada pelos místicos europeus do Século XIX que
influenciam fortemente as doutrinas espiritualistas surgidas na Europa na era
pós-revolução francesa. Outra hipótese, é que a ideia de “evolução espiritual”
deriva das ideias positivistas de Auguste Comte, que consiste em um conceito
filosófico fruto do movimento causado pela publicação da obra “A Origem das Espécies”,
de Charles Darwin, também no Século XIX. O objetivo aqui não é adotar uma
hipótese em particular, até porque elas coexistem na história e podem ter papel
sinérgico na formação de uma figura importante para o pensamento espiritualista
Ocidental: Allan Kardec.
A doutrina codificada por Kardec aborda a “evolução espiritual” como uma trajetória natural da humanidade, onde não há retorno – o que distingue das ideias orientais de ciclo reencarnacionista e reforça o caráter positivista – e este tema ganha tanta importância na obra de Kardec que a “evolução espiritual” ganha ares de expressão do propósito divino para a criação humana, e propondo que este conceito é um complemento ao fundamento cristão de Salvação da Alma.
Então, a fusão das ideias do
misticismo ocidental, positivismo e proposituras do Novo Testamento
(especialmente os escritos de Paulo de Tarso) dão sólido embasamento para a
formulação de uma doutrina que prega a reencarnação como manifestação do Amor
Incondicional de Deus e define a prática da filantropia e caridade como
ferramenta de acúmulo de méritos para progresso espiritual. Este fundamento se
encaixa perfeitamente como solução Cristã ao anseio daqueles que não se adequam
nas estruturas doutrinárias Católicas e Protestante, além de oferecer uma visão
moderna e esteticamente aceitável para conceitos antigos e tidos como
primitivos, como os modelos de sociedade tribal e culto às forças da natureza.
Aí nasce a minha inquietação.
Allan Kardec era educador e
espiritualista, mas acima de tudo era uma pessoa de seu tempo e se espera que
sua obra seja pautada em modelos filosóficos de sua época, por tanto sua obra é
carregada de posicionamentos positivistas. E uma característica central do
pensamento positivista é que a humanidade evolui abandonando uma organização
social baseada em culto à natureza rumo ao pensamento científico e racional,
surgindo uma trajetória evolutiva com a prevalência daquele que apresenta
superioridade intelectual sobre aqueles menos evoluídos. E no final da cadeia
evolutiva, a sociedade nos moldes europeus é considerada mais evoluída do que
as sociedades não europeias.
Eu diria sem medo de errar que o
positivismo é um pilar importante para o pensamento ocidental, inclusive no seu
caráter excludente e preconceituoso, e que doutrinas pautadas no positivismo
são incompatíveis com os pensamentos tradicionais africanos e ameríndios. Ironicamente
as doutrinas de Kardec ainda são utilizadas para gerar aceitação e direcionar algumas
formas de cultos afro-brasileiros, não vou discorrer sobre as implicações disso
porque muitas pessoas já o fazem, mas o entendimento de que a espiritualidade
pautada no culto à ancestralidade e forças da natureza ser totalmente contrário
aos princípios positivistas me fez questionar o ideal da “evolução espiritual”.
Observei que, na prática, “evoluir” é adotar um padrão de comportamento
aparente seguindo os padrões cristão e europeu do século XIX, que por mais que
se faça um esforço para adaptar à atualidade não esconde o seu caráter
moralista e elitista.
Um culto afro-brasileiro não deveria admitir qualquer filosofia que afirme que as gerações atuais são mais evoluídas que as gerações anteriores e que cultuar a natureza representa atraso. Qualquer pessoa que se entende como parte de práticas ancestrais tem a obrigação de entender que a sua existência deve pautar-se na continuidade de um legado construído a duras penas por aqueles que vieram antes, e que dedicar-se a uma conduta individual mais polida e agradável é meramente uma questão de boa educação e postura na sociedade – ninguém deveria precisar de um sistema doutrinário espiritual para saber se portar em público. A tarefa daqueles que se reconhecem como parte de um sistema pautado na ancestralidade é muito maior e abrangente, cabe a cada um de nós como proceder para entregar aos que vêm depois de nós condições melhores do que as que recebemos. E por fim, deixo como reflexão um ditado africano: “A última geração é a mais bem paga, mas é a mais cobrada”.
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Texto publicado na Revista Makumba #1 (Click para download)
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Torá,
a Lei Judaica. Disponível em: http://www.chabad.org.br/tora/index.html,
acessado em 12 de maio de 2021.
Bíblia do Rei James. Disponível em: https://www.bkjfiel.com.br,
acessado em 12 de maio de 2021.
Alcorão. Disponível em: http://www.ligaislamica.org.br/alcorao_sagrado.pdf,
acessado em 12 de maio de 2021.
Oliveira, C. S. A. A ancestralidade nos rituais de cura: as narrativas do ebós. Revista Encantar - Educação, Cultura e Sociedade, v. 1, n. 2, p. 216-222, 2019.
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