sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Não quero evoluir espiritualmente, e te digo o porquê.

 

Parece até um senso comum para praticantes de alguma doutrina ou sistema religioso que deve-se buscar a “evolução espiritual”. Mas o fato é que este senso comum não possui fundamentação tradicional e é mais recente do que se imagina. Este não é um fundamento doutrinário de sistemas religiosos tradicionais abraânicos, estes sistemas religiosos baseiam-se no conceito de salvação por meio da obediência à uma doutrina revelada. Consultando os textos sagrados observa-se que a Torá Judaica e a Bíblia Cristã sequer mencionam a palavra “evolução”. No Alcorão, esta palavra é utilizada relacionada à processos de maturação do mundo material, não ao desenvolvimento do espírito.

Também não é fundamento dos cultos tradicionais africanos e nativos do Brasil, não há registro escrito sobre a existência de uma “finalidade evolutiva” no exercício da espiritualidade. O que se observa em registros modernos é que para os povos tradicionais brasileiros e africanos a prática espiritual é parte da sua cultura, podendo constituir uma maneira de interação com os antepassados e com a natureza, criação e fortalecimentos vínculos familiares e, até mesmo, rituais de cura (OLIVEIRA, 2016). Evoluir espiritualmente não é um objetivo, a questão para estes povos é viver bem.

Certamente se você está lendo este texto, possui alguma relação ou interesse em cultos afro-brasileiros, estes que estão atravessados por elementos de religiões abraânicas e cultos tradicionais em diferentes nuances e formas. E curiosamente, nos cultos afro-brasileiros nota-se um carinho especial com a expressão “evolução espiritual”, de maneira que esta seria a nossa “missão” na Terra e, de certa forma, preenche o nosso vazio existencial causado pela pergunta: “Para que viemos a este mundo?”. Mas por que os antigos não observaram essa questão? E quem trouxe este conceito para os nossos cultos?  Existem algumas possíveis respostas para estas perguntas.


Uma é a hipótese de que este conceito é inspirado na ideia de progresso espiritual através das reencarnações, própria dos povos asiáticos, assimilada pelos místicos europeus do Século XIX que influenciam fortemente as doutrinas espiritualistas surgidas na Europa na era pós-revolução francesa. Outra hipótese, é que a ideia de “evolução espiritual” deriva das ideias positivistas de Auguste Comte, que consiste em um conceito filosófico fruto do movimento causado pela publicação da obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, também no Século XIX. O objetivo aqui não é adotar uma hipótese em particular, até porque elas coexistem na história e podem ter papel sinérgico na formação de uma figura importante para o pensamento espiritualista Ocidental: Allan Kardec.


A doutrina codificada por Kardec aborda a “evolução espiritual” como uma trajetória natural da humanidade, onde não há retorno – o que distingue das ideias orientais de ciclo reencarnacionista e reforça o caráter positivista – e este tema ganha tanta importância na obra de Kardec que a “evolução espiritual” ganha ares de expressão do propósito divino para a criação humana, e propondo que este conceito é um complemento ao fundamento cristão de Salvação da Alma.

Então, a fusão das ideias do misticismo ocidental, positivismo e proposituras do Novo Testamento (especialmente os escritos de Paulo de Tarso) dão sólido embasamento para a formulação de uma doutrina que prega a reencarnação como manifestação do Amor Incondicional de Deus e define a prática da filantropia e caridade como ferramenta de acúmulo de méritos para progresso espiritual. Este fundamento se encaixa perfeitamente como solução Cristã ao anseio daqueles que não se adequam nas estruturas doutrinárias Católicas e Protestante, além de oferecer uma visão moderna e esteticamente aceitável para conceitos antigos e tidos como primitivos, como os modelos de sociedade tribal e culto às forças da natureza. Aí nasce a minha inquietação.

Allan Kardec era educador e espiritualista, mas acima de tudo era uma pessoa de seu tempo e se espera que sua obra seja pautada em modelos filosóficos de sua época, por tanto sua obra é carregada de posicionamentos positivistas. E uma característica central do pensamento positivista é que a humanidade evolui abandonando uma organização social baseada em culto à natureza rumo ao pensamento científico e racional, surgindo uma trajetória evolutiva com a prevalência daquele que apresenta superioridade intelectual sobre aqueles menos evoluídos. E no final da cadeia evolutiva, a sociedade nos moldes europeus é considerada mais evoluída do que as sociedades não europeias. 

Eu diria sem medo de errar que o positivismo é um pilar importante para o pensamento ocidental, inclusive no seu caráter excludente e preconceituoso, e que doutrinas pautadas no positivismo são incompatíveis com os pensamentos tradicionais africanos e ameríndios. Ironicamente as doutrinas de Kardec ainda são utilizadas para gerar aceitação e direcionar algumas formas de cultos afro-brasileiros, não vou discorrer sobre as implicações disso porque muitas pessoas já o fazem, mas o entendimento de que a espiritualidade pautada no culto à ancestralidade e forças da natureza ser totalmente contrário aos princípios positivistas me fez questionar o ideal da “evolução espiritual”. Observei que, na prática, “evoluir” é adotar um padrão de comportamento aparente seguindo os padrões cristão e europeu do século XIX, que por mais que se faça um esforço para adaptar à atualidade não esconde o seu caráter moralista e elitista.

Um culto afro-brasileiro não deveria admitir qualquer filosofia que afirme que as gerações atuais são mais evoluídas que as gerações anteriores e que cultuar a natureza representa atraso. Qualquer pessoa que se entende como parte de práticas ancestrais tem a obrigação de entender que a sua existência deve pautar-se na continuidade de um legado construído a duras penas por aqueles que vieram antes, e que dedicar-se a uma conduta individual mais polida e agradável é meramente uma questão de boa educação e postura na sociedade – ninguém deveria precisar de um sistema doutrinário espiritual para saber se portar em público. A tarefa daqueles que se reconhecem como parte de um sistema pautado na ancestralidade é muito maior e abrangente, cabe a cada um de nós como proceder para entregar aos que vêm depois de nós condições melhores do que as que recebemos. E por fim, deixo como reflexão um ditado africano: “A última geração é a mais bem paga, mas é a mais cobrada”.

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Texto publicado na Revista Makumba #1 (Click para download)

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Referências consultadas

Torá, a Lei Judaica. Disponível em: http://www.chabad.org.br/tora/index.html, acessado em 12 de maio de 2021.

Bíblia do Rei James. Disponível em: https://www.bkjfiel.com.br, acessado em 12 de maio de 2021.

Alcorão. Disponível em: http://www.ligaislamica.org.br/alcorao_sagrado.pdf, acessado em 12 de maio de 2021.

Oliveira, C. S. A. A ancestralidade nos rituais de cura: as narrativas do ebós. Revista Encantar - Educação, Cultura e Sociedade, v. 1, n. 2, p. 216-222, 2019.

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