"Às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz
Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz"
- Trecho da canção Minha Alma, O Rappa (1999)
Mas se um sistema altamente
competitivo é tão destrutivo, por que ele tão eficiente a ponto de não
conseguirmos enxergar um horizonte em que haja um meio de vida menos
competitivo? As respostas para isso, seria material para diversos artigos nesta
revista, mas irei me ater à duas linhas de raciocínio: Efeito psicológico do
pensamento ocidental como modelo hegemônico e o entendimento romantizado da
paz.
O arquétipo do Herói e o
equívoco ocidental
A fundamentação dessa discussão
será construída no modelo de psique humana proposta pelo psiquiatra e
psicoterapêutico suíço Carl Gustav Jung, que trata a mente como uma
manifestação de natureza simbólica em sua constituição -recomendo a todos que
se dedicam à prática espiritual que estudem C. G. Jung, atualmente seu conteúdo
é trabalhado de diferentes maneiras de forma acessível para diferentes
públicos. Dentre os múltiplos arquétipos abordados por Jung, o arquétipo do
Herói é um dos mais notáveis, principalmente pela sua ênfase na cultura Grega,
que sem dúvidas, é um dos pilares para o pensamento ocidental.
C. G. Jung relaciona a trajetória
heroica como base do desenvolvimento psicológico humano. Tamanha é a importância do arquétipo do Herói que é trabalhado como modulador
psicológico da auto-estima.
Outro autor importante para compreender o arquétipo do Herói é o célebre mitólogo Joseph Campbell. Campbell em toda a sua
obra aborda historicamente as principais figuras mitológicas de tradições
antigas e complementa com a teoria Junguiana, integrando de maneira brilhante o
conceito Junguiano de Inconsciente Coletivo.
Joseph Campbell
Um adendo, muitos
acadêmicos relacionam a figura do Herói
como um lastro psicológico para as relações entre seres humanos e os deuses em
todo o mundo. Mas o ponto balizador sempre é a cultura Ocidental, então
releituras foram feitas para ajustes a esse modelo e culturas ancestrais que
não apresentem a figura do Herói em status divinizado foram totalmente
ignoradas, a exemplo das culturas Bantu e Nativo Americanas e a associação das
teorias de Jung e os estudos de Campbell é algumas vezes utilizada para
justificar o nagô-centrismo nos cultos afro-brasileiros.
Mas este é um tema para outro artigo.
Voltando ao nosso assunto
principal, a sociedade ocidental como a conhecemos foi construída a partir da
dominação de povos compreendidos como “inferiores” e se desenvolveu baseando-se
nos valores capitalistas de competição e dominação, e as religiões
afro-brasileiras foram desenvolvidas dentro da sociedade ocidental é claro que
estes valores estão no inconsciente das pessoas e compõem a sua visão de mundo,
inclusive o praticante de religião afro-brasileira. Então estamos todos
sujeitos a agir conforme os ditames deste ambiente de competição constante, sem
exceção.
O que a priori é um instinto
natural humano acaba sendo supervalorizado em detrimento de outras potências
psicológicas humanas, como a introspecção por exemplo, criando um cenário em
que se exalta a agressividade e o poder de destruição e não o caráter edificador
e corajoso que o arquétipo do Herói
representa em nossa psiquê. E assim
como se romantiza o arquétipo do Herói e
ímpeto guerreiro, romantiza-se a paz.
A romantização da paz é violência ressignificada
Não podemos perder de vista a perspectiva
colonizadora em que nossa sociedade foi constituída e pode parecer paranoia mas
a maioria dos valores e posicionamentos podem ser influenciados por esta
perspectiva. Assim, como o ímpeto guerreiro pode ser romantizado a paz também
pode. Partindo do conceito Junguiano de Herói
como aquele que realiza feitos prodigiosos, se sacrifica em prol de seu
povo e triunfa ao final, o maior Herói
do mundo ocidental é um homem que viveu, espalhou sabedoria, enfrentou seus
inimigos, se sacrificou e triunfou ao final: Jesus Cristo. Outra vez, destaco
não é uma implicância minha, é um fato.
E Jesus Cristo tem uma
característica em especial que é o triunfo por meio do diálogo e servidão à seu
deus, que é quem lhe concede a graça da vitória sem a “batalha final”. A
vitória sobre a morte vem em um ato divino de extremo sacrifício em que ele
esse torna o “Cordeiro de Deus” e todos que seguirem seus passos estarão salvos
por meio do derramamento de seu sangue. Assim, dentro de um processo de
dominação colonial usa-se esta figura- que a princípio não possuía este
caráter- para criar um comportamento ideal de pacífismo romantizado.
No ocidente ser pacífico é ser
passivo, de maneira que a paz não é um acordo entre iguais e sim a submissão do
inferiorizado, que deve realizar seu papel social de maneira que se espera e
sem questionar a sua realidade.
Mas pense comigo: Para haver um
submisso, necessita haver quem o submeta. Então, a manutenção da paz sob esta
perspectiva exige hierarquização em todos os níveis e que os submetidos nunca
questionem a ordem vigente. O que resulta nas teorias que envolvem os valores
cristãos na manutenção da ordem colonial-capitalista. Este tema é amplamente
estudado por diversos teóricos da sociologia e política de diversas linhas de
pensamento, e possivelmente Jesus Cristo não tinha esse tipo de pretensão em
sua época. Para a nossa saúde mental é necessário romper com esta lógica.
O que está posto para nós é uma intensa estrutura que realiza uma violência muito velada que nos impele a nos combater para progredir ou nos afirmar para não sermos submissos ao mesmo tempo que devemos nos conformar com as injustiças criadas pelo ser humano e nos é ensinado como parte plano divino. Ou seja, estamos cada vez mais combativos entre nós e individualistas. Trazendo para os nossos ambientes de prática espiritual e convivência interpessoal, te pergunto: Quanto das suas relações não são reproduções deste cenário patológico? Você é capaz de pensar e concretizar um cenário diferente?
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Texto publicado na Revista Makumba #2 (Click para download)
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https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/consumo-de-antidepressivos-cresce-74-em-seis-anos-no-brasil/, acessado em 22 de junho de 2021.
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/consumo-de-alcool-cresce-no-brasil-e-provoca-cada-vez-mais-danos/, acessado em 22 de junho de 2021.
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