segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Cultura, Egrégora Espiritual e Miscigenação

Cultura

Pessoalmente, tenho um apresso por este tema devido à sua complexidade e os possíveis desdobramentos caóticos que ele pode gerar. Com exceção dos Cultos de Nação, os fatores culturais são ignorados nos cultos afro-brasileiros, penso que este fato colaborou com a gama de absurdos facilmente observados, revelando uma completa falta de compromisso com a história de vida dos povos que cada culto representa. Isso é uma infelicidade pois o maior monumento que um povo pode deixar sobre o chão que ocupa é sua cultura. A cultura de um povo reúne todos os símbolos e acontecimentos que possibilitam a sua perpetuação, e, como seres espirituais que somos, inclui as práticas litúrgicas. 

Cultura dentro de um olhar antropológico é o conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos e costumes que distiguem um grupo social. Porém a palavra "Cultura" tem sua raiz etmológica no Latim e está relacionada com os atos de "fazer perpetuar" e de "veneração". Interessante como Cultura e Culto apresentam a mesma raiz etmológica e dentro do contexto atual, defende-se a ideia de que estão separadas. Mais um grande equívoco ocidental pós-moderno.
Roda de Caxambu no Espírito Santo.


A cultura é o fator primordial de agregação de forças espirituais no culto ancestral, porque todos os ancestrais têm um propósito em comum: a garantia da plena vida de seus descendentes. As diferentes culturas sustentam diferentes entes espirituais, liturgias e fundamentos próprios. Para os povos antigos, a cultura (e toda a bagagem que ela carrega) é mais importante que a individualidade humana, ao ponto de que uniões conjugais podem representar uniões entre grupos coletivos (famílias, tribos, culturas) e podem necessitar da aprovação dos mais velhos, como cita  a escritora Sobonfu Somé na sua afamada obra "O Espírito da Intimidade". Mas esta compreensão não é exclusiva do Continente Africano. A humanidade é repleta de exemplos históricos em que a união entre povos e culturas (através da união de indivíduos) com o intuito de atender um anseio cultural (Sarti, 1992). 
Sobonfu Somé. Professora, escritora e ativista natural de Burkina Faso.

Porém, vivemos no Ocidente, e a compreensão cultural ocidental pós-iluminista é de que o indivíduo deve ser valorizado a ponto de garantir sua liberdade de escolha e decisão, e que ninguém e nada pode interferir nessa liberdade individual. Sabemos que esta ideia só fica no imaginário, pois a realidade é outra. Mas crescemos com este conceito impresso no nosso inconsciente e assim tendemos a viver. A princípio este entendimento é inocente, mas nos levar a crer que estamos livres de qualquer influência cultural de valores. E isso é uma mentira, e das mais perigosas. 

O Brasil é um país multicultural, e que possui uma estrutura legal de Estado que garante a liberdade aos diferentes grupos culturais que compõem seu Estado-Nação. Mas não podemos negligenciar que as Culturas são vivas e formadas por pessoas, não são estatutos e declarações de direitos. Então, as relações humanas influenciam diretamente sobre a cultura. Vivemos sobre a égide colonial entre os séculos XVI e XIX e Imperial de 1822 até 1889. Ou seja, sob dominação oficial Europeia-Cristã por quase 400 anos. E mesmo fora do domínio Europeu, culturas entendidas como inferiores (leia-se afro-brasileira) foram perseguidas com aval oficial do Estado Brasileiro até 1945. É inegável que houve pressão cultural Cristã sobre os Cultos não Cristãos, estou desconsiderando os casos de intolerância religiosa sem o aval do Estado.

O que entendo como mais perigoso nesse processo é a naturalização dessa violência, e compreendo que  mesmo que as dinâmicas entre os povos envolvessem conflitos (violentos muitas vezes), a diversidade era comum em sociedades pré-Cristãs, e essa multiplicidade nunca foi muito bem aceita entre as sociedades Cristãs, e no Brasil não seria diferente. Esse "preconceito natural" é a marca do processo de expansão civilizatória Europeia-Cristã. Esta pressão cultural influenciou na formação de uma novas formas culturais e de culto. Daí as diferentes formas de sincretismos e adaptações que encontramos hoje. Fora do contexto de dominação que o a Colonização Europeia causou sobre os Povos Escravizados em África e no Brasil, penso que a conformação dos cultos afro-brasileiros seria muito diferente. Haja vista os Cultos afro na América Central em que muitos deles preservam a sua Cosmologia original.  Mas o que essa conversa tem a ver com espiritualidade? Tudo.

No período Colonial grupos étnicos se uniram culturalmente para resistir ao processo de dominação e outros se aliaram ao pretenso colonizador na esperança de obter facilidades diante do novo cenário. Não há culpados e inocentes neste cenário, não sabemos as motivações exatas dos indivíduos neste momento histórico, somente atos e consequências. Como vimos em parágrafos anteriores, a pressão cultural não foi somente durante o período Colonial, eu digo que a pressão nunca acabou. O pensamento excludente Cristão formado no Brasil apenas se mostrou mais tolerante para alguns grupos daí surgem os sincretismos que entendemos como algo fruto da "amálgama cultural". Discordo desse pensamento, pois a amálgama cultural que surge naturalmente no Brasil também é marginalizada a exemplo das uniões entre divindades indígenas e africanas, e o papel de alguns santos católicos nas Congadas que são sempre tratados como uma forma inferior de divinação.


Representação de um quilombo. Os quilombos eram locais de união entre as culturas indígenas e africanas. 

A "amálgama cultural" valorizada é aquela que sustenta a falácia da democracia racial no Brasil. Aquela que coloca divindades africanas em segundo plano, apaga ou infantiliza divindades indígenas ou facilita a entrada da elite nos terreiros. É esse aspecto "multicultural" e "universalista" que é aceito e festejado. Porém não podemos viver evidenciando a importância daqueles que nos vilipendiaram, penso que é importante ressaltar o papel de resistência daqueles que tiveram a coragem e sagacidade para ser contra-fluxo em um cenário injusto. 


Egrégora espiritual

Egrégora é um conceito muito difundido entre os espiritualistas ocidentais. Comumente definida como energia espiritual resultante do somatório de forças mentais, porém as definições variam de acordo com a doutrina que a aborda. A Ordem Rosacruz¹, difusora deste conceito apresenta a definição: 

"Egrégora (do grego agrêgorein-vigiar) é uma palavra que no livro de Enoch designa os anjos que juraram vigiar e proteger o Monte Hermon. O termo pode ser traduzido por 'entidade vigilante'. Assim, a Egrégora (egrégore) é uma entidade, um ser vigilante coletivo produzio por uma assembleia (...) que o alimenta"

Este conceito de egrégora influenciou a Maçonaria e todos os cultos que se originam a partir do contato com estas Ordens Espirituais. Mas é um conceito falho, ao meu ver. Este conceito de egrégora negligencia o papel cultural no molde do pensamento das pessoas e que estas estão livres de influências do seu meio. Prefiro a definição apresentada pela Sociedade de Estudos Kemeticos "Kemetismo Brasil"²:

"(...) como as principais nações animistas e totêmicas africanas possuem múltiplos elos em comum, a tradição tem como base o culto aos ancestrais (akhu), os seus adeptos se agrupam em clãs que, por sua vez, cultuam um espírito ancestral principal, que tanto pode ser uma força da natureza, quanto cultural (egrégora)".


Entendo que a cultura é o maior fator agregador e formador de egrégora. Então se um culto se enquadra dentro da cultura Cristã, ele está inserido na Egrégora Cristã - ainda, que apresente elementos estáticos de outras culturas. Penso que se um culto se relaciona com uma divindade africana seguindo as bases filosóficas culturais judaico-cristãs e/ou europeias, esse culto é judaico-cristão e/ou europeu.  Só muda o "envelope". E nesse aspecto, incluo os cultos que se fundamentam nos estudos herméticos ocultistas de Éliphas Levi, Alester Crowley e Anton LaVey e os culto originários de Zélio F. de Moraes, que ele nomeado posteriormente como Umbanda Branca (nada contra, mas nada a favor), ainda que possam usar a palavra "orixá" em uma base cultural europeia, não muda a base cultural e a egrégora europeia.

Vivemos em um momento de muita auto-crítica dentro dos cultos afro-brasileiros, noto que dentre toda a nossa diversidade, temos uma concordância: as coisas parecem estar se perdendo. Mas antes de qualquer iniciativa de resgate, penso que precisamos saber o que estamos buscando. Penso que todo esforço deve ser em prol do resgate e manutenção da nossa cultura. Ela é o nosso cerne. mas a nossa cultura é mista, independente do que eu ou você pense, certos fatos não podem ser modificados. Temos que lidar com a mistura de culturas, seja ela forçada ou natural.


Miscigenação

Por mais extremistas que possam parecer as minhas reflexões, gostaria de te tranquilizar sobre uma coisa: eu tenho consciência de que não existe cultura pura. Toda cultura é derivada. Dentro da cultura religiosa qual faço parte, a Cabula, ocorreu uma união cultural entre diferentes povos: Bantus, Tupinambás e Malês. Esta união ocorre dentro de um contexto de resistência á ocupação Portuguesa, poderíamos dizer que esse cenário cultural seria o suficiente para unir povos que sofrem, mas não é só isso. Estes três grupos étnicos tinham muitas similaridades culturais em comum, como o culto aos astros celestes, cultura de práticas mágicas com elementos naturais e o culto aos ancestrais. Em estudos aprofundados, estas similaridades culturais se aprofundam ainda mais e como não é nosso objetivo trazer isto hoje, recomendo uma visita ao site da minha família religiosa, a Sanzala Kassambe. Dentro deste exemplo, a egrégora espiritual desta prática espiritual abrange entes espirituais destas culturas e para entender essa egrégora é imprescindível compreender estas culturas e sua história.

E os demais cultos? Creio que não cabe a mim dissertar sobre culturas quais não pertenço.  Poderia fazê-lo por um viés bibliográfico, mas, sinceramente, não me interesso em fazer o trabalho dos outros. Mas, o alerta que deixo é que quando não conhecemos as culturas que compõem os nossos cultos, nossas egrégoras morrem e outras ocupam este espaço. Penso que a miscigenação de culturas que o Brasil possui possibilita ao seu povo uma oportunidade de aprendizado enorme e para alguns, a possibilidade de desafiar o colonialismo. O fato de um mestiço escolher cultuar ancestrais que resistiram ao apagamento histórico em detrimento de uma cultura que insiste em se apresentar como superior - sem sê-lo - é uma oportunidade ímpar de luta. 


Referências

¹ Fonte: https://www.amorc.org.br/egregora acessado em: 12 de dezembro de 2021.

² Fonte: https://www.kemetismobrasil.com.br/o-que-e-kemetismo-1, acessado em: 12 de dezembro de 2021.

SARTI, C. A. Contibuições da antropologia para o estudo da família. Psicologia USP, v. 3, n. 1-2, p. 69-76, 1992.

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