quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Ruas, Estradas e Encruzilhadas: lugares para quem sabe o que faz

Os caminhos sempre foram lugar de culto para a humanidade, os povos Tupis cultuavam a divindade Anhangá - guardião dos caminhos, trilhas e acessos externos à aldeias. Os povos africanos que vieram ao Brasil possuíam diversas divindades equivalentes, que se você conhece um pouco sobre as religiões afro-brasileiras conhece como Exu. PambuNjila, Legba, e alguns cultos possuem as figuras de espíritos humanos que habitam o ambiente externo ao lar, conhecidos popularmente como "Povo de Rua". A internet é repleta de material informativo sobre o "Povo de Rua" e, se você pertence à alguma comunidade de culto afro-brasileiro, acredito que possui uma grande fonte de conhecimento. Como o título sugere, não vou tratar de divindades da Rua (tratarei aqui com letra maiúscula), o assunto aqui é a Rua como um espaço sagrado.

É comum nas doutrinas religiosas o discurso do culto doméstico como uma oportunidade de trazer o contato com o Sagrado para dentro dos nossos lares. Isso é muito interessante, afinal esta prática é algo tão lógico que não deveria haver uma necessidade de incentivo. O lar é o nosso refúgio. Não sou inocente a ponto de negligenciar os conflitos familiares pelos mais diversos motivos, porém nem sempre um lar é formado pelos nossos familiares, de toda maneira um lugar em que não há segurança, não existe um lar. Dentro dos nossos lares os acontecimentos ocorrem de maneira a manter a boa convivência, o equilíbrio e a saúde emocional de todos que o habitam. Não digo que não hajam conflitos, isso é utópico, mas dentro dos lares estes conflitos são mediados para a manutenção do lar, que reflete o interior de seus habitantes.  Em uma dimensão simbólica, o nosso lar é um reflexo da nossa personalidade - em seus aspectos emocional, mental e espiritual. E fora do lar, está a Rua.

 

É interessante pensar na Rua como o oposto aos nossos lares, como um ambiente onde o fluxo de acontecimentos ocorre fora da juridição do nossos valores familiares. Mas mais interessante ainda, me parece, pensar na Rua como um lugar de movimento, encontros e contradições onde o estado de alerta deve ser constante. Infelizmente, dentro da compreensão ocidental movimento, contradição e alerta são considerados indesejados. Historicamente, o nomadismo é considerado um status de subdesenvolvimento tecnológico, em contraste com o fato de que muitas culturas de desenvolveram com base no nomadismo. E é irônico como a supervalorização dos lares reflete na maneira de lidar com o mundo da Rua. O conhecimento e cultura oriundos do ambiente de Rua são marginais, e consequentemente as pessoas envolvidas nessas culturas também são.


Mas a Rua é o grande laboratório de aprendizado, sim laboratório. Em um laboratório aprendemos e operamos de maneira prática e a margem para erro são muito menores que em uma sala de aula. E assim como em um laboratório, para se sair bem na Rua é necessário conhecimento, atenção e jogo de cintura. A Rua é um lugar de encontro de diferenças. Infelizmente, a construção do imaginário ocidental a única maneira de haver um encontro de diferenças é por meio da desavença, a coexistência não é compreendida como uma possibilidade natural. Penso que por isso, a Rua é tão demonizada.

Pessoalmente, enxergo de maneira diferente. Estudando as culturas nômades da África e da Ásia que se construíram sobre a vivência nas estradas e ruas é admirável a riqueza cultural, mesmo em tempos em que as populações mundiais eram menores, eram povos cosmopolitas - normalmente poliglotas! As Ruas, Estradas e Encruzilhadas eram pontos de fluxo de sabedoria. Poderia citar exemplos habituais dos cultos afro-brasileiros, mas muitos já o fazem. Vamos à Bíblia Cristã: O caminho (Estrada) para Jerusalém é tratado como um ambiente de aprendizado, purificação, provações, revelações e perigos¹ (evidentemente!). E hoje os tempos são outros mas as Ruas, Estradas e Encruzilhadas (mesmo que uma esfera simbólica) continuam sendo um lugar de cultura e vivência.



Não quero aqui minimizar as desumanidades que acontecem com as pessoas em situação de rua, violência, tráfico de drogas e condições sub-humanas de habitação são problemas dos grandes centros urbanos e que precisam de solução a nível de políticas públicas. Porém a nível prático em nossas vidas, em nossos lares construímos nossos valores junto à nossa família, mas é fora dele que colocamos à prova e crescemos verdadeiramente. As Ruas, Estradas e Encruzilhadas colocam em cheque tudo que acreditamos ser útil e nos mostra o que é realmente importante para sobreviver neste mundo. Estes ambientes são lugares para quem sabe o que está fazendo e é auto-responsável, nossas Divindades e  Mestres espirituais que têm ligação com esses Ponto de Força, representam e nos ensinam que o mundo é lugar pra quem tem inteligência, atenção e coragem.


¹ A peregrinação para Jerusalém é descrita em diversos trechos da Bíblia, principalmente nos Livros de Lucas e em Atos dos Apóstulos;

Recomendo o livro  de Luiz Antônio Simas "O corpo encantado das ruas (2019)" .


Zambi Untala!



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