terça-feira, 10 de agosto de 2021

A romantização do ímpeto guerreiro e o louvor à violência

"Às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz

Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz"

- Trecho da canção Minha Alma, O Rappa (1999) 


O mundo moderno exige que sejamos preparados para competir, sejamos fortes e sempre alerta pois o seu sucesso pode depender do fracasso de alguém. Somos impelidos a nos comparar e sempre buscar o patamar mais elevado para nos sentirmos bem sucedidos. Este é o nosso mundo, se prepare ou pereça, sob a justificativa de uma meritocracia mentirosa e fantasiosamente fundamentada no ambiente natural não humano. A ordem natural não segue parâmetros capitalistas construídos sobre pilares de dominação e obtenção de lucro individual. Mas independente de opiniões, um fato é inegável, ninguém sai ileso de um ambiente de combate, por mais preparada que uma pessoa acredite ser, a pressão a qual somos sujeitos atualmente é danosa.

Segundo a OMS houve um acréscimo de mais de 70% no consumo de antidepressivos e de 110% no consumo de ansiolíticos no Brasil entre os anos de 2010 e 2016.  E quanto ao consumo de bebidas alcoólicas, o psicotrópico mais consumido no mundo, o consumo cresceu 46% entre 2006 e 2016. Mas as perspectivas não me parecem otimistas. Por mais questionamentos que qualquer um de nós possa ter sobre o nosso modelo social, muitas vezes não conseguimos pensar fora desta caixa que nos aprisiona.

Mas se um sistema altamente competitivo é tão destrutivo, por que ele tão eficiente a ponto de não conseguirmos enxergar um horizonte em que haja um meio de vida menos competitivo? As respostas para isso, seria material para diversos artigos nesta revista, mas irei me ater à duas linhas de raciocínio: Efeito psicológico do pensamento ocidental como modelo hegemônico e o entendimento romantizado da paz.

O arquétipo do Herói e o equívoco ocidental

A fundamentação dessa discussão será construída no modelo de psique humana proposta pelo psiquiatra e psicoterapêutico suíço Carl Gustav Jung, que trata a mente como uma manifestação de natureza simbólica em sua constituição -recomendo a todos que se dedicam à prática espiritual que estudem C. G. Jung, atualmente seu conteúdo é trabalhado de diferentes maneiras de forma acessível para diferentes públicos. Dentre os múltiplos arquétipos abordados por Jung, o arquétipo do Herói é um dos mais notáveis, principalmente pela sua ênfase na cultura Grega, que sem dúvidas, é um dos pilares para o pensamento ocidental.


Carl Gustav Jung


Segundo Jung, arquétipo do Herói, representa a plenitude do ser humano em sua capacidade de ação. Reflete a nossos ímpetos de conquista, de concretização de objetivos, desenvolvimento espiritual e sacrifício em prol de sua comunidade. Este arquétipo representado em diversas culturas por meio de heróis e heroínas, deuses e deusas e etc.

C. G. Jung relaciona a trajetória heroica como base do desenvolvimento psicológico humano.  Tamanha é a importância do arquétipo do Herói que é trabalhado como modulador psicológico da auto-estima. Outro autor importante para compreender o arquétipo do Herói é o célebre mitólogo Joseph Campbell. Campbell em toda a sua obra aborda historicamente as principais figuras mitológicas de tradições antigas e complementa com a teoria Junguiana, integrando de maneira brilhante o conceito Junguiano de Inconsciente Coletivo.

Joseph Campbell

Um adendo, muitos acadêmicos relacionam a figura do Herói como um lastro psicológico para as relações entre seres humanos e os deuses em todo o mundo. Mas o ponto balizador sempre é a cultura Ocidental, então releituras foram feitas para ajustes a esse modelo e culturas ancestrais que não apresentem a figura do Herói em status divinizado foram totalmente ignoradas, a exemplo das culturas Bantu e Nativo Americanas e a associação das teorias de Jung e os estudos de Campbell é algumas vezes utilizada para justificar o nagô-centrismo nos cultos afro-brasileiros. Mas este é um tema para outro artigo.

Voltando ao nosso assunto principal, a sociedade ocidental como a conhecemos foi construída a partir da dominação de povos compreendidos como “inferiores” e se desenvolveu baseando-se nos valores capitalistas de competição e dominação, e as religiões afro-brasileiras foram desenvolvidas dentro da sociedade ocidental é claro que estes valores estão no inconsciente das pessoas e compõem a sua visão de mundo, inclusive o praticante de religião afro-brasileira. Então estamos todos sujeitos a agir conforme os ditames deste ambiente de competição constante, sem exceção.

O que a priori é um instinto natural humano acaba sendo supervalorizado em detrimento de outras potências psicológicas humanas, como a introspecção por exemplo, criando um cenário em que se exalta a agressividade e o poder de destruição e não o caráter edificador e corajoso que o arquétipo do Herói representa em nossa psiquê. E assim como se romantiza o arquétipo do Herói e ímpeto guerreiro, romantiza-se a paz.

A romantização da paz é violência ressignificada

Não podemos perder de vista a perspectiva colonizadora em que nossa sociedade foi constituída e pode parecer paranoia mas a maioria dos valores e posicionamentos podem ser influenciados por esta perspectiva. Assim, como o ímpeto guerreiro pode ser romantizado a paz também pode. Partindo do conceito Junguiano de Herói como aquele que realiza feitos prodigiosos, se sacrifica em prol de seu povo e triunfa ao final, o maior Herói do mundo ocidental é um homem que viveu, espalhou sabedoria, enfrentou seus inimigos, se sacrificou e triunfou ao final: Jesus Cristo. Outra vez, destaco não é uma implicância minha, é um fato.

E Jesus Cristo tem uma característica em especial que é o triunfo por meio do diálogo e servidão à seu deus, que é quem lhe concede a graça da vitória sem a “batalha final”. A vitória sobre a morte vem em um ato divino de extremo sacrifício em que ele esse torna o “Cordeiro de Deus” e todos que seguirem seus passos estarão salvos por meio do derramamento de seu sangue. Assim, dentro de um processo de dominação colonial usa-se esta figura- que a princípio não possuía este caráter- para criar um comportamento ideal de pacífismo romantizado.

No ocidente ser pacífico é ser passivo, de maneira que a paz não é um acordo entre iguais e sim a submissão do inferiorizado, que deve realizar seu papel social de maneira que se espera e sem questionar a sua realidade.

Mas pense comigo: Para haver um submisso, necessita haver quem o submeta. Então, a manutenção da paz sob esta perspectiva exige hierarquização em todos os níveis e que os submetidos nunca questionem a ordem vigente. O que resulta nas teorias que envolvem os valores cristãos na manutenção da ordem colonial-capitalista. Este tema é amplamente estudado por diversos teóricos da sociologia e política de diversas linhas de pensamento, e possivelmente Jesus Cristo não tinha esse tipo de pretensão em sua época. Para a nossa saúde mental é necessário romper com esta lógica.

O que está posto para nós é uma intensa estrutura que realiza uma violência muito velada que nos impele a nos combater para progredir ou nos afirmar para não sermos submissos ao mesmo tempo que devemos nos conformar com as injustiças criadas pelo ser humano e nos é ensinado como parte plano divino. Ou seja, estamos cada vez mais combativos entre nós e individualistas. Trazendo para os nossos ambientes de prática espiritual e convivência interpessoal, te pergunto: Quanto das suas relações não são reproduções deste cenário patológico? Você é capaz de pensar e concretizar um cenário diferente?

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Texto publicado na Revista Makumba #2 (Click para download)

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Referências consultadas

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/consumo-de-alcool-cresce-no-brasil-e-provoca-cada-vez-mais-danos/, acessado em 22 de junho de 2021.

Campos, Z. D. P. Eugenistas e culturais no estudo das religiões afro-brasileiras em Pernambuco, Paralellus: Revista de Estudos de Religião-UNICAMP, v. 8, n. 17, p. 153-171, 2017.

Polity, S. Recontar é viver: resgatando a história e a auto-estima de crianças com dificuldades de aprendizagem. Construção psicopedagógica, v. 17, n. 15, p. 56-78, 2009. 

Soares, T. B. A semitótica do herói. Porto das Letras, v. 6, n. especial, p. 113-128, 2020.

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