segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Cultura, Egrégora Espiritual e Miscigenação

Cultura

Pessoalmente, tenho um apresso por este tema devido à sua complexidade e os possíveis desdobramentos caóticos que ele pode gerar. Com exceção dos Cultos de Nação, os fatores culturais são ignorados nos cultos afro-brasileiros, penso que este fato colaborou com a gama de absurdos facilmente observados, revelando uma completa falta de compromisso com a história de vida dos povos que cada culto representa. Isso é uma infelicidade pois o maior monumento que um povo pode deixar sobre o chão que ocupa é sua cultura. A cultura de um povo reúne todos os símbolos e acontecimentos que possibilitam a sua perpetuação, e, como seres espirituais que somos, inclui as práticas litúrgicas. 

Cultura dentro de um olhar antropológico é o conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos e costumes que distiguem um grupo social. Porém a palavra "Cultura" tem sua raiz etmológica no Latim e está relacionada com os atos de "fazer perpetuar" e de "veneração". Interessante como Cultura e Culto apresentam a mesma raiz etmológica e dentro do contexto atual, defende-se a ideia de que estão separadas. Mais um grande equívoco ocidental pós-moderno.
Roda de Caxambu no Espírito Santo.


A cultura é o fator primordial de agregação de forças espirituais no culto ancestral, porque todos os ancestrais têm um propósito em comum: a garantia da plena vida de seus descendentes. As diferentes culturas sustentam diferentes entes espirituais, liturgias e fundamentos próprios. Para os povos antigos, a cultura (e toda a bagagem que ela carrega) é mais importante que a individualidade humana, ao ponto de que uniões conjugais podem representar uniões entre grupos coletivos (famílias, tribos, culturas) e podem necessitar da aprovação dos mais velhos, como cita  a escritora Sobonfu Somé na sua afamada obra "O Espírito da Intimidade". Mas esta compreensão não é exclusiva do Continente Africano. A humanidade é repleta de exemplos históricos em que a união entre povos e culturas (através da união de indivíduos) com o intuito de atender um anseio cultural (Sarti, 1992). 
Sobonfu Somé. Professora, escritora e ativista natural de Burkina Faso.

Porém, vivemos no Ocidente, e a compreensão cultural ocidental pós-iluminista é de que o indivíduo deve ser valorizado a ponto de garantir sua liberdade de escolha e decisão, e que ninguém e nada pode interferir nessa liberdade individual. Sabemos que esta ideia só fica no imaginário, pois a realidade é outra. Mas crescemos com este conceito impresso no nosso inconsciente e assim tendemos a viver. A princípio este entendimento é inocente, mas nos levar a crer que estamos livres de qualquer influência cultural de valores. E isso é uma mentira, e das mais perigosas. 

O Brasil é um país multicultural, e que possui uma estrutura legal de Estado que garante a liberdade aos diferentes grupos culturais que compõem seu Estado-Nação. Mas não podemos negligenciar que as Culturas são vivas e formadas por pessoas, não são estatutos e declarações de direitos. Então, as relações humanas influenciam diretamente sobre a cultura. Vivemos sobre a égide colonial entre os séculos XVI e XIX e Imperial de 1822 até 1889. Ou seja, sob dominação oficial Europeia-Cristã por quase 400 anos. E mesmo fora do domínio Europeu, culturas entendidas como inferiores (leia-se afro-brasileira) foram perseguidas com aval oficial do Estado Brasileiro até 1945. É inegável que houve pressão cultural Cristã sobre os Cultos não Cristãos, estou desconsiderando os casos de intolerância religiosa sem o aval do Estado.

O que entendo como mais perigoso nesse processo é a naturalização dessa violência, e compreendo que  mesmo que as dinâmicas entre os povos envolvessem conflitos (violentos muitas vezes), a diversidade era comum em sociedades pré-Cristãs, e essa multiplicidade nunca foi muito bem aceita entre as sociedades Cristãs, e no Brasil não seria diferente. Esse "preconceito natural" é a marca do processo de expansão civilizatória Europeia-Cristã. Esta pressão cultural influenciou na formação de uma novas formas culturais e de culto. Daí as diferentes formas de sincretismos e adaptações que encontramos hoje. Fora do contexto de dominação que o a Colonização Europeia causou sobre os Povos Escravizados em África e no Brasil, penso que a conformação dos cultos afro-brasileiros seria muito diferente. Haja vista os Cultos afro na América Central em que muitos deles preservam a sua Cosmologia original.  Mas o que essa conversa tem a ver com espiritualidade? Tudo.

No período Colonial grupos étnicos se uniram culturalmente para resistir ao processo de dominação e outros se aliaram ao pretenso colonizador na esperança de obter facilidades diante do novo cenário. Não há culpados e inocentes neste cenário, não sabemos as motivações exatas dos indivíduos neste momento histórico, somente atos e consequências. Como vimos em parágrafos anteriores, a pressão cultural não foi somente durante o período Colonial, eu digo que a pressão nunca acabou. O pensamento excludente Cristão formado no Brasil apenas se mostrou mais tolerante para alguns grupos daí surgem os sincretismos que entendemos como algo fruto da "amálgama cultural". Discordo desse pensamento, pois a amálgama cultural que surge naturalmente no Brasil também é marginalizada a exemplo das uniões entre divindades indígenas e africanas, e o papel de alguns santos católicos nas Congadas que são sempre tratados como uma forma inferior de divinação.


Representação de um quilombo. Os quilombos eram locais de união entre as culturas indígenas e africanas. 

A "amálgama cultural" valorizada é aquela que sustenta a falácia da democracia racial no Brasil. Aquela que coloca divindades africanas em segundo plano, apaga ou infantiliza divindades indígenas ou facilita a entrada da elite nos terreiros. É esse aspecto "multicultural" e "universalista" que é aceito e festejado. Porém não podemos viver evidenciando a importância daqueles que nos vilipendiaram, penso que é importante ressaltar o papel de resistência daqueles que tiveram a coragem e sagacidade para ser contra-fluxo em um cenário injusto. 


Egrégora espiritual

Egrégora é um conceito muito difundido entre os espiritualistas ocidentais. Comumente definida como energia espiritual resultante do somatório de forças mentais, porém as definições variam de acordo com a doutrina que a aborda. A Ordem Rosacruz¹, difusora deste conceito apresenta a definição: 

"Egrégora (do grego agrêgorein-vigiar) é uma palavra que no livro de Enoch designa os anjos que juraram vigiar e proteger o Monte Hermon. O termo pode ser traduzido por 'entidade vigilante'. Assim, a Egrégora (egrégore) é uma entidade, um ser vigilante coletivo produzio por uma assembleia (...) que o alimenta"

Este conceito de egrégora influenciou a Maçonaria e todos os cultos que se originam a partir do contato com estas Ordens Espirituais. Mas é um conceito falho, ao meu ver. Este conceito de egrégora negligencia o papel cultural no molde do pensamento das pessoas e que estas estão livres de influências do seu meio. Prefiro a definição apresentada pela Sociedade de Estudos Kemeticos "Kemetismo Brasil"²:

"(...) como as principais nações animistas e totêmicas africanas possuem múltiplos elos em comum, a tradição tem como base o culto aos ancestrais (akhu), os seus adeptos se agrupam em clãs que, por sua vez, cultuam um espírito ancestral principal, que tanto pode ser uma força da natureza, quanto cultural (egrégora)".


Entendo que a cultura é o maior fator agregador e formador de egrégora. Então se um culto se enquadra dentro da cultura Cristã, ele está inserido na Egrégora Cristã - ainda, que apresente elementos estáticos de outras culturas. Penso que se um culto se relaciona com uma divindade africana seguindo as bases filosóficas culturais judaico-cristãs e/ou europeias, esse culto é judaico-cristão e/ou europeu.  Só muda o "envelope". E nesse aspecto, incluo os cultos que se fundamentam nos estudos herméticos ocultistas de Éliphas Levi, Alester Crowley e Anton LaVey e os culto originários de Zélio F. de Moraes, que ele nomeado posteriormente como Umbanda Branca (nada contra, mas nada a favor), ainda que possam usar a palavra "orixá" em uma base cultural europeia, não muda a base cultural e a egrégora europeia.

Vivemos em um momento de muita auto-crítica dentro dos cultos afro-brasileiros, noto que dentre toda a nossa diversidade, temos uma concordância: as coisas parecem estar se perdendo. Mas antes de qualquer iniciativa de resgate, penso que precisamos saber o que estamos buscando. Penso que todo esforço deve ser em prol do resgate e manutenção da nossa cultura. Ela é o nosso cerne. mas a nossa cultura é mista, independente do que eu ou você pense, certos fatos não podem ser modificados. Temos que lidar com a mistura de culturas, seja ela forçada ou natural.


Miscigenação

Por mais extremistas que possam parecer as minhas reflexões, gostaria de te tranquilizar sobre uma coisa: eu tenho consciência de que não existe cultura pura. Toda cultura é derivada. Dentro da cultura religiosa qual faço parte, a Cabula, ocorreu uma união cultural entre diferentes povos: Bantus, Tupinambás e Malês. Esta união ocorre dentro de um contexto de resistência á ocupação Portuguesa, poderíamos dizer que esse cenário cultural seria o suficiente para unir povos que sofrem, mas não é só isso. Estes três grupos étnicos tinham muitas similaridades culturais em comum, como o culto aos astros celestes, cultura de práticas mágicas com elementos naturais e o culto aos ancestrais. Em estudos aprofundados, estas similaridades culturais se aprofundam ainda mais e como não é nosso objetivo trazer isto hoje, recomendo uma visita ao site da minha família religiosa, a Sanzala Kassambe. Dentro deste exemplo, a egrégora espiritual desta prática espiritual abrange entes espirituais destas culturas e para entender essa egrégora é imprescindível compreender estas culturas e sua história.

E os demais cultos? Creio que não cabe a mim dissertar sobre culturas quais não pertenço.  Poderia fazê-lo por um viés bibliográfico, mas, sinceramente, não me interesso em fazer o trabalho dos outros. Mas, o alerta que deixo é que quando não conhecemos as culturas que compõem os nossos cultos, nossas egrégoras morrem e outras ocupam este espaço. Penso que a miscigenação de culturas que o Brasil possui possibilita ao seu povo uma oportunidade de aprendizado enorme e para alguns, a possibilidade de desafiar o colonialismo. O fato de um mestiço escolher cultuar ancestrais que resistiram ao apagamento histórico em detrimento de uma cultura que insiste em se apresentar como superior - sem sê-lo - é uma oportunidade ímpar de luta. 


Referências

¹ Fonte: https://www.amorc.org.br/egregora acessado em: 12 de dezembro de 2021.

² Fonte: https://www.kemetismobrasil.com.br/o-que-e-kemetismo-1, acessado em: 12 de dezembro de 2021.

SARTI, C. A. Contibuições da antropologia para o estudo da família. Psicologia USP, v. 3, n. 1-2, p. 69-76, 1992.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Ruas, Estradas e Encruzilhadas: lugares para quem sabe o que faz

Os caminhos sempre foram lugar de culto para a humanidade, os povos Tupis cultuavam a divindade Anhangá - guardião dos caminhos, trilhas e acessos externos à aldeias. Os povos africanos que vieram ao Brasil possuíam diversas divindades equivalentes, que se você conhece um pouco sobre as religiões afro-brasileiras conhece como Exu. PambuNjila, Legba, e alguns cultos possuem as figuras de espíritos humanos que habitam o ambiente externo ao lar, conhecidos popularmente como "Povo de Rua". A internet é repleta de material informativo sobre o "Povo de Rua" e, se você pertence à alguma comunidade de culto afro-brasileiro, acredito que possui uma grande fonte de conhecimento. Como o título sugere, não vou tratar de divindades da Rua (tratarei aqui com letra maiúscula), o assunto aqui é a Rua como um espaço sagrado.

É comum nas doutrinas religiosas o discurso do culto doméstico como uma oportunidade de trazer o contato com o Sagrado para dentro dos nossos lares. Isso é muito interessante, afinal esta prática é algo tão lógico que não deveria haver uma necessidade de incentivo. O lar é o nosso refúgio. Não sou inocente a ponto de negligenciar os conflitos familiares pelos mais diversos motivos, porém nem sempre um lar é formado pelos nossos familiares, de toda maneira um lugar em que não há segurança, não existe um lar. Dentro dos nossos lares os acontecimentos ocorrem de maneira a manter a boa convivência, o equilíbrio e a saúde emocional de todos que o habitam. Não digo que não hajam conflitos, isso é utópico, mas dentro dos lares estes conflitos são mediados para a manutenção do lar, que reflete o interior de seus habitantes.  Em uma dimensão simbólica, o nosso lar é um reflexo da nossa personalidade - em seus aspectos emocional, mental e espiritual. E fora do lar, está a Rua.

 

É interessante pensar na Rua como o oposto aos nossos lares, como um ambiente onde o fluxo de acontecimentos ocorre fora da juridição do nossos valores familiares. Mas mais interessante ainda, me parece, pensar na Rua como um lugar de movimento, encontros e contradições onde o estado de alerta deve ser constante. Infelizmente, dentro da compreensão ocidental movimento, contradição e alerta são considerados indesejados. Historicamente, o nomadismo é considerado um status de subdesenvolvimento tecnológico, em contraste com o fato de que muitas culturas de desenvolveram com base no nomadismo. E é irônico como a supervalorização dos lares reflete na maneira de lidar com o mundo da Rua. O conhecimento e cultura oriundos do ambiente de Rua são marginais, e consequentemente as pessoas envolvidas nessas culturas também são.


Mas a Rua é o grande laboratório de aprendizado, sim laboratório. Em um laboratório aprendemos e operamos de maneira prática e a margem para erro são muito menores que em uma sala de aula. E assim como em um laboratório, para se sair bem na Rua é necessário conhecimento, atenção e jogo de cintura. A Rua é um lugar de encontro de diferenças. Infelizmente, a construção do imaginário ocidental a única maneira de haver um encontro de diferenças é por meio da desavença, a coexistência não é compreendida como uma possibilidade natural. Penso que por isso, a Rua é tão demonizada.

Pessoalmente, enxergo de maneira diferente. Estudando as culturas nômades da África e da Ásia que se construíram sobre a vivência nas estradas e ruas é admirável a riqueza cultural, mesmo em tempos em que as populações mundiais eram menores, eram povos cosmopolitas - normalmente poliglotas! As Ruas, Estradas e Encruzilhadas eram pontos de fluxo de sabedoria. Poderia citar exemplos habituais dos cultos afro-brasileiros, mas muitos já o fazem. Vamos à Bíblia Cristã: O caminho (Estrada) para Jerusalém é tratado como um ambiente de aprendizado, purificação, provações, revelações e perigos¹ (evidentemente!). E hoje os tempos são outros mas as Ruas, Estradas e Encruzilhadas (mesmo que uma esfera simbólica) continuam sendo um lugar de cultura e vivência.



Não quero aqui minimizar as desumanidades que acontecem com as pessoas em situação de rua, violência, tráfico de drogas e condições sub-humanas de habitação são problemas dos grandes centros urbanos e que precisam de solução a nível de políticas públicas. Porém a nível prático em nossas vidas, em nossos lares construímos nossos valores junto à nossa família, mas é fora dele que colocamos à prova e crescemos verdadeiramente. As Ruas, Estradas e Encruzilhadas colocam em cheque tudo que acreditamos ser útil e nos mostra o que é realmente importante para sobreviver neste mundo. Estes ambientes são lugares para quem sabe o que está fazendo e é auto-responsável, nossas Divindades e  Mestres espirituais que têm ligação com esses Ponto de Força, representam e nos ensinam que o mundo é lugar pra quem tem inteligência, atenção e coragem.


¹ A peregrinação para Jerusalém é descrita em diversos trechos da Bíblia, principalmente nos Livros de Lucas e em Atos dos Apóstulos;

Recomendo o livro  de Luiz Antônio Simas "O corpo encantado das ruas (2019)" .


Zambi Untala!



terça-feira, 10 de agosto de 2021

A romantização do ímpeto guerreiro e o louvor à violência

"Às vezes eu falo com a vida, às vezes é ela quem diz

Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz"

- Trecho da canção Minha Alma, O Rappa (1999) 


O mundo moderno exige que sejamos preparados para competir, sejamos fortes e sempre alerta pois o seu sucesso pode depender do fracasso de alguém. Somos impelidos a nos comparar e sempre buscar o patamar mais elevado para nos sentirmos bem sucedidos. Este é o nosso mundo, se prepare ou pereça, sob a justificativa de uma meritocracia mentirosa e fantasiosamente fundamentada no ambiente natural não humano. A ordem natural não segue parâmetros capitalistas construídos sobre pilares de dominação e obtenção de lucro individual. Mas independente de opiniões, um fato é inegável, ninguém sai ileso de um ambiente de combate, por mais preparada que uma pessoa acredite ser, a pressão a qual somos sujeitos atualmente é danosa.

Segundo a OMS houve um acréscimo de mais de 70% no consumo de antidepressivos e de 110% no consumo de ansiolíticos no Brasil entre os anos de 2010 e 2016.  E quanto ao consumo de bebidas alcoólicas, o psicotrópico mais consumido no mundo, o consumo cresceu 46% entre 2006 e 2016. Mas as perspectivas não me parecem otimistas. Por mais questionamentos que qualquer um de nós possa ter sobre o nosso modelo social, muitas vezes não conseguimos pensar fora desta caixa que nos aprisiona.

Mas se um sistema altamente competitivo é tão destrutivo, por que ele tão eficiente a ponto de não conseguirmos enxergar um horizonte em que haja um meio de vida menos competitivo? As respostas para isso, seria material para diversos artigos nesta revista, mas irei me ater à duas linhas de raciocínio: Efeito psicológico do pensamento ocidental como modelo hegemônico e o entendimento romantizado da paz.

O arquétipo do Herói e o equívoco ocidental

A fundamentação dessa discussão será construída no modelo de psique humana proposta pelo psiquiatra e psicoterapêutico suíço Carl Gustav Jung, que trata a mente como uma manifestação de natureza simbólica em sua constituição -recomendo a todos que se dedicam à prática espiritual que estudem C. G. Jung, atualmente seu conteúdo é trabalhado de diferentes maneiras de forma acessível para diferentes públicos. Dentre os múltiplos arquétipos abordados por Jung, o arquétipo do Herói é um dos mais notáveis, principalmente pela sua ênfase na cultura Grega, que sem dúvidas, é um dos pilares para o pensamento ocidental.


Carl Gustav Jung


Segundo Jung, arquétipo do Herói, representa a plenitude do ser humano em sua capacidade de ação. Reflete a nossos ímpetos de conquista, de concretização de objetivos, desenvolvimento espiritual e sacrifício em prol de sua comunidade. Este arquétipo representado em diversas culturas por meio de heróis e heroínas, deuses e deusas e etc.

C. G. Jung relaciona a trajetória heroica como base do desenvolvimento psicológico humano.  Tamanha é a importância do arquétipo do Herói que é trabalhado como modulador psicológico da auto-estima. Outro autor importante para compreender o arquétipo do Herói é o célebre mitólogo Joseph Campbell. Campbell em toda a sua obra aborda historicamente as principais figuras mitológicas de tradições antigas e complementa com a teoria Junguiana, integrando de maneira brilhante o conceito Junguiano de Inconsciente Coletivo.

Joseph Campbell

Um adendo, muitos acadêmicos relacionam a figura do Herói como um lastro psicológico para as relações entre seres humanos e os deuses em todo o mundo. Mas o ponto balizador sempre é a cultura Ocidental, então releituras foram feitas para ajustes a esse modelo e culturas ancestrais que não apresentem a figura do Herói em status divinizado foram totalmente ignoradas, a exemplo das culturas Bantu e Nativo Americanas e a associação das teorias de Jung e os estudos de Campbell é algumas vezes utilizada para justificar o nagô-centrismo nos cultos afro-brasileiros. Mas este é um tema para outro artigo.

Voltando ao nosso assunto principal, a sociedade ocidental como a conhecemos foi construída a partir da dominação de povos compreendidos como “inferiores” e se desenvolveu baseando-se nos valores capitalistas de competição e dominação, e as religiões afro-brasileiras foram desenvolvidas dentro da sociedade ocidental é claro que estes valores estão no inconsciente das pessoas e compõem a sua visão de mundo, inclusive o praticante de religião afro-brasileira. Então estamos todos sujeitos a agir conforme os ditames deste ambiente de competição constante, sem exceção.

O que a priori é um instinto natural humano acaba sendo supervalorizado em detrimento de outras potências psicológicas humanas, como a introspecção por exemplo, criando um cenário em que se exalta a agressividade e o poder de destruição e não o caráter edificador e corajoso que o arquétipo do Herói representa em nossa psiquê. E assim como se romantiza o arquétipo do Herói e ímpeto guerreiro, romantiza-se a paz.

A romantização da paz é violência ressignificada

Não podemos perder de vista a perspectiva colonizadora em que nossa sociedade foi constituída e pode parecer paranoia mas a maioria dos valores e posicionamentos podem ser influenciados por esta perspectiva. Assim, como o ímpeto guerreiro pode ser romantizado a paz também pode. Partindo do conceito Junguiano de Herói como aquele que realiza feitos prodigiosos, se sacrifica em prol de seu povo e triunfa ao final, o maior Herói do mundo ocidental é um homem que viveu, espalhou sabedoria, enfrentou seus inimigos, se sacrificou e triunfou ao final: Jesus Cristo. Outra vez, destaco não é uma implicância minha, é um fato.

E Jesus Cristo tem uma característica em especial que é o triunfo por meio do diálogo e servidão à seu deus, que é quem lhe concede a graça da vitória sem a “batalha final”. A vitória sobre a morte vem em um ato divino de extremo sacrifício em que ele esse torna o “Cordeiro de Deus” e todos que seguirem seus passos estarão salvos por meio do derramamento de seu sangue. Assim, dentro de um processo de dominação colonial usa-se esta figura- que a princípio não possuía este caráter- para criar um comportamento ideal de pacífismo romantizado.

No ocidente ser pacífico é ser passivo, de maneira que a paz não é um acordo entre iguais e sim a submissão do inferiorizado, que deve realizar seu papel social de maneira que se espera e sem questionar a sua realidade.

Mas pense comigo: Para haver um submisso, necessita haver quem o submeta. Então, a manutenção da paz sob esta perspectiva exige hierarquização em todos os níveis e que os submetidos nunca questionem a ordem vigente. O que resulta nas teorias que envolvem os valores cristãos na manutenção da ordem colonial-capitalista. Este tema é amplamente estudado por diversos teóricos da sociologia e política de diversas linhas de pensamento, e possivelmente Jesus Cristo não tinha esse tipo de pretensão em sua época. Para a nossa saúde mental é necessário romper com esta lógica.

O que está posto para nós é uma intensa estrutura que realiza uma violência muito velada que nos impele a nos combater para progredir ou nos afirmar para não sermos submissos ao mesmo tempo que devemos nos conformar com as injustiças criadas pelo ser humano e nos é ensinado como parte plano divino. Ou seja, estamos cada vez mais combativos entre nós e individualistas. Trazendo para os nossos ambientes de prática espiritual e convivência interpessoal, te pergunto: Quanto das suas relações não são reproduções deste cenário patológico? Você é capaz de pensar e concretizar um cenário diferente?

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Texto publicado na Revista Makumba #2 (Click para download)

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Referências consultadas

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/consumo-de-alcool-cresce-no-brasil-e-provoca-cada-vez-mais-danos/, acessado em 22 de junho de 2021.

Campos, Z. D. P. Eugenistas e culturais no estudo das religiões afro-brasileiras em Pernambuco, Paralellus: Revista de Estudos de Religião-UNICAMP, v. 8, n. 17, p. 153-171, 2017.

Polity, S. Recontar é viver: resgatando a história e a auto-estima de crianças com dificuldades de aprendizagem. Construção psicopedagógica, v. 17, n. 15, p. 56-78, 2009. 

Soares, T. B. A semitótica do herói. Porto das Letras, v. 6, n. especial, p. 113-128, 2020.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Não quero evoluir espiritualmente, e te digo o porquê.

 

Parece até um senso comum para praticantes de alguma doutrina ou sistema religioso que deve-se buscar a “evolução espiritual”. Mas o fato é que este senso comum não possui fundamentação tradicional e é mais recente do que se imagina. Este não é um fundamento doutrinário de sistemas religiosos tradicionais abraânicos, estes sistemas religiosos baseiam-se no conceito de salvação por meio da obediência à uma doutrina revelada. Consultando os textos sagrados observa-se que a Torá Judaica e a Bíblia Cristã sequer mencionam a palavra “evolução”. No Alcorão, esta palavra é utilizada relacionada à processos de maturação do mundo material, não ao desenvolvimento do espírito.

Também não é fundamento dos cultos tradicionais africanos e nativos do Brasil, não há registro escrito sobre a existência de uma “finalidade evolutiva” no exercício da espiritualidade. O que se observa em registros modernos é que para os povos tradicionais brasileiros e africanos a prática espiritual é parte da sua cultura, podendo constituir uma maneira de interação com os antepassados e com a natureza, criação e fortalecimentos vínculos familiares e, até mesmo, rituais de cura (OLIVEIRA, 2016). Evoluir espiritualmente não é um objetivo, a questão para estes povos é viver bem.

Certamente se você está lendo este texto, possui alguma relação ou interesse em cultos afro-brasileiros, estes que estão atravessados por elementos de religiões abraânicas e cultos tradicionais em diferentes nuances e formas. E curiosamente, nos cultos afro-brasileiros nota-se um carinho especial com a expressão “evolução espiritual”, de maneira que esta seria a nossa “missão” na Terra e, de certa forma, preenche o nosso vazio existencial causado pela pergunta: “Para que viemos a este mundo?”. Mas por que os antigos não observaram essa questão? E quem trouxe este conceito para os nossos cultos?  Existem algumas possíveis respostas para estas perguntas.


Uma é a hipótese de que este conceito é inspirado na ideia de progresso espiritual através das reencarnações, própria dos povos asiáticos, assimilada pelos místicos europeus do Século XIX que influenciam fortemente as doutrinas espiritualistas surgidas na Europa na era pós-revolução francesa. Outra hipótese, é que a ideia de “evolução espiritual” deriva das ideias positivistas de Auguste Comte, que consiste em um conceito filosófico fruto do movimento causado pela publicação da obra “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, também no Século XIX. O objetivo aqui não é adotar uma hipótese em particular, até porque elas coexistem na história e podem ter papel sinérgico na formação de uma figura importante para o pensamento espiritualista Ocidental: Allan Kardec.


A doutrina codificada por Kardec aborda a “evolução espiritual” como uma trajetória natural da humanidade, onde não há retorno – o que distingue das ideias orientais de ciclo reencarnacionista e reforça o caráter positivista – e este tema ganha tanta importância na obra de Kardec que a “evolução espiritual” ganha ares de expressão do propósito divino para a criação humana, e propondo que este conceito é um complemento ao fundamento cristão de Salvação da Alma.

Então, a fusão das ideias do misticismo ocidental, positivismo e proposituras do Novo Testamento (especialmente os escritos de Paulo de Tarso) dão sólido embasamento para a formulação de uma doutrina que prega a reencarnação como manifestação do Amor Incondicional de Deus e define a prática da filantropia e caridade como ferramenta de acúmulo de méritos para progresso espiritual. Este fundamento se encaixa perfeitamente como solução Cristã ao anseio daqueles que não se adequam nas estruturas doutrinárias Católicas e Protestante, além de oferecer uma visão moderna e esteticamente aceitável para conceitos antigos e tidos como primitivos, como os modelos de sociedade tribal e culto às forças da natureza. Aí nasce a minha inquietação.

Allan Kardec era educador e espiritualista, mas acima de tudo era uma pessoa de seu tempo e se espera que sua obra seja pautada em modelos filosóficos de sua época, por tanto sua obra é carregada de posicionamentos positivistas. E uma característica central do pensamento positivista é que a humanidade evolui abandonando uma organização social baseada em culto à natureza rumo ao pensamento científico e racional, surgindo uma trajetória evolutiva com a prevalência daquele que apresenta superioridade intelectual sobre aqueles menos evoluídos. E no final da cadeia evolutiva, a sociedade nos moldes europeus é considerada mais evoluída do que as sociedades não europeias. 

Eu diria sem medo de errar que o positivismo é um pilar importante para o pensamento ocidental, inclusive no seu caráter excludente e preconceituoso, e que doutrinas pautadas no positivismo são incompatíveis com os pensamentos tradicionais africanos e ameríndios. Ironicamente as doutrinas de Kardec ainda são utilizadas para gerar aceitação e direcionar algumas formas de cultos afro-brasileiros, não vou discorrer sobre as implicações disso porque muitas pessoas já o fazem, mas o entendimento de que a espiritualidade pautada no culto à ancestralidade e forças da natureza ser totalmente contrário aos princípios positivistas me fez questionar o ideal da “evolução espiritual”. Observei que, na prática, “evoluir” é adotar um padrão de comportamento aparente seguindo os padrões cristão e europeu do século XIX, que por mais que se faça um esforço para adaptar à atualidade não esconde o seu caráter moralista e elitista.

Um culto afro-brasileiro não deveria admitir qualquer filosofia que afirme que as gerações atuais são mais evoluídas que as gerações anteriores e que cultuar a natureza representa atraso. Qualquer pessoa que se entende como parte de práticas ancestrais tem a obrigação de entender que a sua existência deve pautar-se na continuidade de um legado construído a duras penas por aqueles que vieram antes, e que dedicar-se a uma conduta individual mais polida e agradável é meramente uma questão de boa educação e postura na sociedade – ninguém deveria precisar de um sistema doutrinário espiritual para saber se portar em público. A tarefa daqueles que se reconhecem como parte de um sistema pautado na ancestralidade é muito maior e abrangente, cabe a cada um de nós como proceder para entregar aos que vêm depois de nós condições melhores do que as que recebemos. E por fim, deixo como reflexão um ditado africano: “A última geração é a mais bem paga, mas é a mais cobrada”.

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Texto publicado na Revista Makumba #1 (Click para download)

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Referências consultadas

Torá, a Lei Judaica. Disponível em: http://www.chabad.org.br/tora/index.html, acessado em 12 de maio de 2021.

Bíblia do Rei James. Disponível em: https://www.bkjfiel.com.br, acessado em 12 de maio de 2021.

Alcorão. Disponível em: http://www.ligaislamica.org.br/alcorao_sagrado.pdf, acessado em 12 de maio de 2021.

Oliveira, C. S. A. A ancestralidade nos rituais de cura: as narrativas do ebós. Revista Encantar - Educação, Cultura e Sociedade, v. 1, n. 2, p. 216-222, 2019.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Boas vindas.

Olá, eu sou o Gilmar. Idealizador e responsável pelo Turimba. O nosso objetivo é trazer interpretações e reflexões a respeito da cultura afro-indígena na produção de filosofia contemporânea. Em alguns momentos você não vai concordar comigo, mas o foco não é angariar seguidores. É gerar reflexões e conclusões úteis para a vida. 

Turimba é o dialeto que mescla o português, idiomas indígenas e idiomas africanos (normalmente bantu)¹. Dialeto muito utilizado em cantigas de louvação na Cabula, Kalundus e Candomblés. Nesta quinta-feira, lhes dou as boas vindas com uma cantiga em Turimba, em louvação aos caçadores; os provedores do alimento físico, intelectual e espiritual:

Aruê, caçador! Labaranguanje mato subaé, Tauamim!

(Versão cantada por Tata Londirá, João da Goméia).



Referências consultadas

Botão, R. U. S. Volta à África (re) africanização e identidade religiosa no candomblé paulista de origem Bantu. Revista Aurora, v. 2, n. 1, 2008.

Créditos de imagem: Ofá de Oxóssi. https://tungracas.wordpress.com/2019/01/03/xire-para-oxossi-e-festa-para-os-caboclos/

Cultura, Egrégora Espiritual e Miscigenação

Cultura Pessoalmente, tenho um apresso por este tema devido à sua complexidade e os possíveis desdobramentos caóticos que ele pode gerar. Co...